sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Cá nós estamos

Ela queria poder dizer pra ele que tinha uma coisa com os anos 80, e do quanto gostava de músicas melosas como Slave to love. De tantas madrugadas que havia passado em claro, nas férias em Salvador, ouvindo as canções de amor que todo mundo já ouviu alguma vez na vida, e que fazem parte do imaginário de tanta gente, em meio a paixões platônicas. São músicas que tocam no rádio depois do almoço, e que por vezes nos colocam em suspenso em meio ao caos do trânsito, perdidos num ano qualquer e que já vai lá, bem distante – e distante também estamos nós daquela pessoa disponível pra vida e cheia de sonhos e esperanças, que fomos outrora.  

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Olho de vidro


“ Mas hoje minha face lúcida acordou antes da
outra e está me vigiando com seu olho gelado.”
Lygia  Fagundes  Telles


Ela imaginava mil coisas que queria para si, mil maneiras de estar conectada com as pessoas de maneira criativa e alegre, e conseguia até mesmo visualizar como seria. Mas Tânatos pulsava forte dentro dela, então, sua vontade era passageira, fugaz, esmaecida. Ela desistia  com muita facilidade de si mesma, se distraía infindavelmente com coisas sem importância, como uma criança absorta apenas no tempo presente, sem se importar com a repercussão do tempo perdido lá no futuro, ela se esquecia do que deveria desejar de verdade e perseguir ardentemente. Uma criança. É isso que ela era. Ainda.

domingo, 23 de outubro de 2011

She wants revange

E ela estava tão acostumada a não receber nada das pessoas, que nas poucas vezes em que foi bem tratada, ficou em jeito, sem saber como receber. Mas acabou gostando disso, e achou mesmo que era assim que deveria ser. Por que não? Por que não posso receber mimos e gentilezas todos os dias? Por que a vida teria que ser uma paródia daquela que tinha sonhado para si?  Era bom, ela também tinha direito a isso, oras! Então, ela resolveu que a partir dali começaria a revanche. Em homenagem a todas as Macabéas do Brasil, ela deixaria de ser uma delas.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Com angústia nos olhos:nos meus, nos seus, nos dela

Então ela era uma espécie de Macabéa consciente, e isso potencializava sua via crucis. Alías, o que tornava aquilo tudo uma via crucis era saber que enfrentar cada dia significava ter um ato de coragem. Sim, isso tudo é mesmo plágio de fragmentos de cultura,  veiculada em mídias que variam do biscoito fino à massa. Mas quem se importa se ela era mais culta que sua chefe e todas as  colegas juntas, se ela não passava de uma estagiária? Decerto, nenhuma delas entendia direito o que ela estava fazendo ali, naquela condição, e deveriam concluir, assim como a maioria das pessoas com quem ela travava algum diálogo, que ela estava vivendo no lugar e do modo errado. Deveriam empreender o seguinte raciocínio: em que momento da vida dela começou a dar tudo errado? Por que ela não é bem sucedida se é uma pessoa assim, diferenciada, para reproduzir o termo usado pelo psiquiatra que nunca tinha ouvido falar na terapia da acupuntura sem agulhas, que prometia liberdade emocional, a EFT. A propósito, ele lhe falava com avareza, pois afinal, pessoa sem importância como ela - ainda que surpreendentemente culta!- não merecia grandes explicações; além do mais, para quê se estender no diálogo se o que ele queria era apenas se satisfazer? 
Mas isso tudo é só água com açúcar, meu bem. São só palavras fáceis,  pra aplacar tua dor pungente. Aguente.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A crença transparente

Ela se deu conta da crença que estava lá, latejando, pulsando em suas veias e envenenando seu sangue, seu corpo e sua alma: a de que ela já havia feito muitas pessoas sofrerem, logo, chegou a sua vez. Então seu sofrimento teria que ser proporcional ao sofrimento daquelas pessoas todas juntas. Ela ainda teria muito que se punir.

sábado, 3 de setembro de 2011

O sorriso enfeitiçado


Aquilo já estava durando muito tempo. Setembro já tinha entrado, e no entanto, ela ainda estava paralisada, perdida, desencontrada do seu eu, suas verdades, seus objetivos. Sua única certeza era a de que seu futuro era incerto. O emaranhado de desejos desencontrados oscilavam dentro dela como um gráfico que mede a frequência de som, e se agitavam na mesma velocidade de um Tchaikovski alucinado.
Ela apenas vivia um dia depois do outro, sentia isso. A agonia era tanta que resolveu ir a um terreiro de candomblé, que se localizava curiosamente na avenida Centenário, quase no ceio da burguesia. Na conversa com um pai de santo jovem em cujas mãos havia cicatrizes de queimadura (que ela supôs ser consequência de uma obrigação pesada) , este revelou-se muito sábio e bom falante, contrariando o ambiente sujo e mal cheiroso do terreiro (que na verdade, era uma casa). Ele encontrou uma bela metáfora para seu triste momento atual: era como se ela tivesse se sujeitado a ficar num quarto onde houvesse apenas o necessário para sobreviver, e tal qual Gregor Samsa, alguém ia ali para levar comida e água, somente. Mas ia chegar o momento em que nem isso ela teria mais. A menção ao célebre personagem era dela em pensamento, claro, enquanto ouvia com atenção aquele homem de pele negra e dentes brancos contar para ela mesma a sua vida. Foi uma conversa profícua, na qual ela quase acreditou na sua vidência. O macumbeiro disse que se ela não mudasse o rumo da sua vida, acabaria se tornando uma doida consciente, um fardo para a família, daquelas que ficam com cara de tranquila, mas na verdade, não pensam coisa com coisa. Ou seja, ele quis dizer que ela entraria em depressão. E ainda por cima, perguntou numa risada por que é mesmo que ela tinha nascido, ao que ela prontamente, respondeu, oxe, eu tô aqui pra buscar ajuda. Interessante notar como ela só usava essa interjeição regional quando estava muito desconcertada, e aquele pai de santo estava rindo da sua miséria, embora o fizesse sem maldade aparente. Certamente, ele pensava algo como "é cada doida que me aparece...". No final das contas, o tal homem recomendou com seriedade três obós, num dos quais ela teria que passar a noite no terreiro, deitava no meio de oferendas para os Orixás, que, segundo ele, já estavam ficando retados com a sua recusa em aceitar a ajuda deles, e caso não os fizesse, eles a largariam de mão. Palavras dele. O caso é que ela era uma pessoa instruída, tinha passado pela faculdade e entendia de muitas coisas. Como é que pagaria mais de um salário mínimo num tratamento espiritual que era alvo de tanta polêmica e de efeito duvidoso? Agradeceu ao pai de santo, na certeza de que nunca mais voltaria lá. O jeito seria aprender a colocar em prática o que ela desconfiava que faria efetivamente efeito. Tinha que levar a sério o grande portal de autodesenvolvimento. Era isso ou a depressão. Nisso o pai de santo acertou em cheio. Mas e quanto aos Orixás, se eles resolvessem se vingar?

Labirinto

Dentro de mim ele nasceu
Úmido
Visgoso
Aderente
Dentro de mim ele não mais quer sair
Permanece
Enrodilhado nas minhas entranhas
Ganhou vida própria
Sarcástico como Medusa
Adstringente
Sórdido e alheio verde musgo